“一簞食,一瓢飲,人不堪其憂,回也不改其樂。(Uma cestinha de bambu com arroz para comer, meia cabaça de água para beber. Outros não suportariam as preocupações de uma vida assim, mas Hui está sempre alegre)”. Giorgio Sinedino, professor assistente no Departamento de Português da Faculdade de Letras da Universidade de Macau (UM) partilha uma de suas citações favoritas dos Analectos num mandarim fluente, em que se descreve o senso de realização do discípulo favorito de Confúcio, Yan Hui. Tendo residido na China durante duas décadas, ele tem um nome chinês, Shen Youyou (沈友友). Sinólogo brasileiro com profunda curiosidade pela cultura tradicional chinesa, ele foi agraciado recentemente com o 18th Special Book Award of China.
Alicerces profundos na filosofia chinesa
Há vinte anos, Giorgio Sinedino chegou na China como jovem diplomata de sua terra natal Brasil para frequentar um curso intensivo de duas semanas. Não desconfiava que permaneceria neste país daí em diante. Baseado em suas experiências, ele acredita firmemente que “só vivendo aqui é que se pode realmente dominar a língua e compreender as conotações culturais por trás dela”. Essa curiosidade pela cultura chinesa foi uma das razões que o retiveram em Pequim findo o curso, primeiro para trabalhar e, mais tarde, para buscar titulação académica no campo da sinologia. Ao longo dos anos, obteve um mestrado em Filosofia Chinesa na Universidade de Pequim e seu doutoramento na mesma disciplina pela Universidade Renmin da China.
O Prof. Sinedino revelou uma aptidão linguística excepcional desde pequeno. Antes mesmo de aprender chinês, já conseguia manejar 14 idiomas, sendo fluente em inglês, francês e espanhol. A despeito de ter estado imerso em tantas línguas, ele tem apenas um nome estrangeiro, “沈友友” (Shen Youyou), um nome chinês. Foi-lhe dado pelo seu mentor, Professor Hu Xudong. “Youyou” é uma tradução fonética do seu nome brasileiro “Giorgio”. Ele confidenciou que, para a maioria das pessoas que ouvem tal nome, ele transmite uma impressão de afabilidade e “de facto, ajudou-me a fazer muitos amigos  aqui”. A seu ver, “na China, ter um nome chinês ajuda a melhor integrar-se na cultura local”. Seus interesses linguísticos levaram-no também a ler extensivamente, tendo identificado assim lacunas nos trabalhos de divulgação da cultura chinesa no Brasil. Neste sentido, ele tem se dedicado à tradução como um meio que considera indispensável para que se permita aos leitores lusófonos apreciarem e compreenderem o valor intelectual da sinologia.
Em Junho deste ano, o Prof. Sinedino foi galardoado com o Special Book Award of China, o maior prémio do sector editorial chinês conferido a estrangeiros, em reconhecimento dos seus contributos excepcionais para a promoção da cultura chinesa a nível mundial. Na cerimónia de entrega dos prémios, proferiu um discurso em representação dos laureados. Jocosamente, assinalou que “este prémio foi uma total surpresa para mim”, acrescentando que deveria aproveitar a oportunidade para agradecer a todos os que o apoiaram ao longo do percurso. Ele confidenciou que outra realização significativa sua foi a escolha em 2023 do seu livro O Imortal do Sul da China: Uma Leitura Cultural do Zhuangzi como finalista do Prémio Jabuti, a mais prestigiada premiação literária do Brasil. Em suas palavras: “O Zhuangzi é pouco conhecido no Brasil. Ele foi nomeado junto de outras obras mais bem conhecidas e compreendidas pelos leitores de meu país. Zhuangzi, todavia, funda-se em premissas filosóficas chinesas, que são dificilmente compreensíveis por eles. Muito embora não tenha obtido o prémio afinal de contas, a nomeação em si significou muito pessoalmente, de modo que se tornou uma fonte de estímulo para que continue a me esforçar nesse caminho”.
Nos seus trabalhos de promoção da filosofia chinesa, o Prof. Sinedino considera necessário encontrar um equilíbrio entre rigor académico e acessibilidade do público em geral. Ao comparar o seu emprego actual com a sua passagem pelo governo, afirmou: “Tenho mais tempo agora para fazer trabalho acadêmico. Desde que ingressei na UM há quase dois anos, publiquei mais trabalhos do que nos dez anos anteriores. Também gostaria de acreditar que a Universidade de Macau poderá providenciar um espaço amplo para desenvolvimento, com liberdade, o que me permitiria realizar investigação aprofundada ao mesmo tempo que poderia continuar a fazer com que a cultura chinesa seja mais acessível para um público mais amplo. Até o presente momento, minha situação permitiu progressos tanto na publicação académica como na tradução de obras”.
Mais do que tradução 
Para além de seu interesse na história das ideias daoistas o Prof. Sinedino é um estudioso ainda mais ávido do confucionismo. Sua obra Os Analectos venceu o 1.º Concurso de Tradução Literária Português-Chinês realizado pela Universide de Macau e a Fundação Macau em 2018. Esta obra, com 640 páginas, não só contém a tradução dos cerca de 12.000 caracteres do texto antigo original, como também extensas explicações e anotações. Ele comenta que “o mundo de língua portuguesa ainda carece de alicerces sólidos para seus estudos sinológicos e os leitores brasileiros consequentemente têm um conhecimento limitado de cultura chinesa. Partindo de uma tal situação, procuro apresentar os fundamentos filosóficos dos clássicos chineses através de explicações detalhadas que vão muito além do texto principal (tradução). A meu ver, este é um método mais capaz de propiciar uma avaliação em profundidade da cultura chinesa para os países de língua portuguesa”.
O trabalho hermenêutico do Prof. Sinedino em suas traduções abrange o contexto cultural e histórico da obra original, assim como o perfilo do autor e da transmissão do texto. Oferecendo uma autoavaliação de seu trabalho, disse que “ao recorrer à hermenêutica chinesa antiga, procuro explorar as conotações do texto no contexto linguístico e social original. Espero que tal estratégia tenha sucesso no sentido de guiar os leitores para que compreendam além do texto”. Este método de tradução não apenas reflecte seu sólido treinamento no campo, mas, ainda mais importante, possibilita que os leitores estabeleçam um diálogo aprofundado com o texto original, sentindo-se mais conectados a ele.
Graças ao seu domínio de várias línguas, o Prof. Sinedino é capaz de recorrer a uma cornucópia de métodos de tradução e tradições literárias dentre autores e obras de renome mundial. Entre as suas referências encontram-se as da tradição clássica ocidental, bem como as obras do autor francês Michel de Montaigne, o legado literário do Século de Ouro Ibérico, bem como práticas da novelística moderna. Ao pedir-se um exemplo, respondeu: “Ao traduzir o Zhuangzi, por exemplo, inspirei-me no estilo literário do romance romano antigo O Asno de Ouro. Acredito que ele consegue realçar o encanto literário do texto original chinês”. Para alguém interessado na cultura chinesa, o trabalho do Prof. Sinedino vai além de uma simples tradução, é um meio para facilitar a aprendizagem mútua entre diversas civilizações.
Fomentar o intercâmbio cultural sino-lusófono
O Prof. Sinedino aponta que, conquanto seja importante publicar obras traduzidas, a promoção da cultura chinesa de facto exige formas mais diversificadas. Neste contexto, ele espera que a Universidade de Macau venha a se revelar uma plataforma realizar esse trabalho. Até o presente, essa instituição tem vindo a investir recursos consideráveis na formação de profissionais bilingues chinês-português, organizando uma variedade de actividades de intercâmbio cultural. Ele, por seu lado, espera ter uma oportunidade de se tornar um dos principais agentes impulsionadores dessas iniciativas.
Nos últimos anos, o sinólogo tem conduzido um programa radiofónico em língua portuguesa intitulado “Ideias Chinesas”, produzido conjuntamente pelo Centro de Ensino e Formação Bilingue Chinês-Português da UM e pelo CRIpor da Rádio Internacional da China. O programa oferece uma apresentação sistemática da filosofia tradicional chinesa sob diferentes perspectivas. As primeiras quatro temporadas, com um total de 60 episódios, abordam Confúcio e Os Analectos, Laozi e Dao De Jing, assim como Mêncio, Zhuangzi e as respectivas obras homónimas, tendo sido também lançada uma quinta temporada, dedicada a Sunzi e à obra Arte da Guerra. Transmitido mundialmente para os países lusófonos, o programa serve como um ponto de entrada para o público local ao universo dos clássicos, filosofias e cultura chineses.
Além disso, com o intuito de promover a literatura chinesa contemporânea, o Prof. Sinedino reuniu uma equipa de especialistas de língua portuguesa, incluindo vários doutorados pela UM que actualmente leccionam em universidades no Interior da China, para traduzir para português a renomada revista literária People’s Literature, publicada pela China Writers Association. Mais ainda, está envolvido em diversos projectos conjuntos destinados a aprofundar o intercâmbio e a cooperação com universidades brasileiras de renome, tais como a Universidade Estadual Paulista, a Universidade Estadual de Campinas, a Universidade de São Paulo, entre outras. Espera-se que, através de exposições, palestras, seminários, publicações e outras formas de promoção, os clássicos chineses venham a marcar presença na comunidade de língua portuguesa.
Uma filosofia pedagógica baseada em ren
A actividade pedagógica do Prof. Sinedino é também subtilmente influenciada pelo seu trabalho de promoção cultural. Nas aulas, valoriza sempre o “ser humano”, integrando o conceito confuciano de ren (Humanidade) às suas aulas.
Ren (仁) representa a essência do pensamento confuciano, constituindo uma das cinco virtudes que compõem o lema da UM. “Ren é geralmente traduzido como ‘humanidade’ em português. Na minha visão, a essência de ren é empatia, significa colocar-se no lugar dos outros”, explica. Para ilustrar esta ideia, partilha o seu próprio percurso académico: começou por estudar Direito e Relações Internacionais na licenciatura, tendo mais tarde mudado de rumo para a área da sinologia. Reconhecendo que não pode comparar a si próprio com os gigantes académicos que dedicaram décadas a uma única especialidade, acredita que o mais importante é seguir com paixão genuína e dedicação inquebrantável o caminho que escolheu. “Da mesma maneira, devemos respeitar as escolhas dos alunos”, acrescenta. Embora deseje que os seus alunos partilhem o entusiasmo que tem pela tradução e pela literatura, encoraja-os a seguir os seus próprios interesses e inclinações.
A paixão é a maior força motriz da aprendizagem, enquanto cabe aos objetivos lhe dar uma direcção. Para além de transmitir conhecimento, o professor procura ajudar os alunos a compreender a importância de fomentar o intercâmbio cultural entre a China e os países de língua portuguesa. Acentua que os Analectos tratam do tema do “aprendizado” desde o seu início, enfatizando que não se trata de uma pura busca de conhecimento, mas de uma parte integral da vida cotidiana. Nada obstante, o objetivo e forma da aprendizagem evoluíram ao longo das gerações. Com a educação moderna a tornar-se mais sistematizada e pragmática, a aprendizagem vai muito além da simples busca pelo conhecimento. É neste sentido que o professor se empenha em mostrar aos seus alunos o valor prático dos estudos. Somente ao compreender o propósito dos estudos é que se pode manter viva a paixão e conseguir ocupar uma posição na sociedade.
Como se por força do destino, o Prof. Sinedino foi influenciado pelo confucionismo a embarcar numa jornada de estudo da cultura chinesa, assumindo a sua promoção como uma vocação pessoal. Nesse processo, chegou, passo a passo, à UM. Um funcionário esforçado, chega todos os dias ao gabinete pontualmente, dedicando-se à sua obra de tradução e de promoção cultural. Espera poder partilhar as suas experiências e ajudar os alunos da UM a encontrarem a sua direcção profissional e alcançar os seus objectivos.
O significado do confucionismo na era da tecnologia
Para o Prof. Sinedino, o confucionismo é único. Sempre que medita sobre os Quatro Livros e os Cinco Clássicos, descobre que, ao apreender o significado profundo dos textos, é possível transformar-se positivamente. Ele acredita que o confucionismo ainda possui um papel relevante a desempenhar na era da inteligência artificial e merece ser promovido, sendo a sua promoção até ainda mais necessária nos dias de hoje. “Veja-se o Clássico dos Poemas, por exemplo. Embora sua arte poética possa divergir dos padrões estéticos contemporâneos, representam-se realidades simples e perenes. Sua reverência pela tradição e um sentido e herança civilizacional são dignos de apreciação, oferecendo um contraponto claro em relação à civilização moderna. Isto é algo que espero que o público esteja disposto a compreender a estudar”.
O avanço tecnológico é de extrema importância para a humanidade. Porém, como é que o ser humano define o seu próprio valor numa sociedade moderna onde os recursos são abundantes e tudo está ao alcance fácil das pessoas? O Prof. Sinedino aponta, “Na era da inteligência artificial, é possível encontrar rapidamente na internet resumos de um livro sob a forma de lista de pontos-chave ou até vídeo de síntese com duração curta de um minuto. No entanto, a prática de leitura ainda importa e não pode ser simplificada”. O sinólogo sublinha que o confucionismo, como outras formas tradicionais de pensar, pode nutrir a alma e alargar os horizontes, acrescentando que “para conseguir crescer e se transformar pessoalmente, é necessário dedicar tempo à leitura, à reflexão e à absorção da sabedoria dos antigos”.
O Prof. Sinedino contou a história do discípulo de Confúcio, Yan Hui, “Nos Analectos, há uma história que encarna o espírito académico promovido pelo confucionismo: ‘Uma cestinha de bambu com arroz para comer, meia cabaça de água para beber. Outros não suportariam as preocupações [de uma vida assim], mas Hui está sempre alegre’. Mesmo sendo difícil alcançar esse ideal no mundo materialista de hoje, podemos pelo menos aprender a ignorar o julgamento dos outros e atribuir sentido para a própria existência”. A cultura chinesa, na qual o professor demonstra grande interesse, constitui simultaneamente uma força motriz no seu percurso. Ele acredita que “embora o caminho adiante seja difícil, a história transmite um espírito de auto-transcendência. Ela deve ser capaz de encorajar ainda mais pessoas a ponderarem sobre a sabedoria confuciana e a redescobrir os clássicos chineses antigos”.
Sobre o Prof. Giorgio Sinedino:
Giorgio Sinedino é professor assistente no Departamento de Português da Faculdade de Letras da Universidade de Macau (UM), exercendo simultaneamente as funções de membro do Comitê Executivo da International Confucian Association e membro do World Council of Sinologists. Chegou à China em 2005, tendo-se instalado em Macau em 2013 e integrado a UM em 2023. Publicou traduções para português de vários clássicos chineses, acompanhadas de explicações e anotações, com destaque para Os Analectos, Dao De Jing: Escritura do Caminho e Escritura da Virtude com os Comentários do Senhor às Margens do Rio, O Imortal do Sul da China: Uma Leitura Cultural do Zhuangzi e Grito de Lu Xun. Actualmente, encontra-se a trabalhar para a publicação de uma obra sobre a Arte da Guerra de Sunzi. Desempenha um papel activo na promoção da cultura chinesa junto da comunidade internacional, tendo realizado contributos excepcionais para promover a aprendizagem e intercâmbio mútuos entre diversas civilizações.